
O experiente policial viu a escala de plantão com desgosto, afinal seu parceiro de anos havia se aposentado, ninguém se atrevia a separar a dupla de muitos anos. Silva e Oliveira trabalhavam juntos, folgavam nos mesmos dias, tiravam férias juntos. Oliveira já contava com alguns anos a mais de corporação quando Silva ingressou, por acaso passaram a trabalhar juntos, ficaram amigos, comumente frequentava a casa um do outro, eram compadres. Tudo ia bem, só que nada é para sempre, adágio que serve para parceria de trabalho e até para a existência do universo. A comemoração da aposentadoria de Oliveira foi singela, porém carinhosa, assim, dentro dos limites de dois caras que sempre que podiam se declaravam machões, a maior demonstração de afeto entre eles era um tapa no ombro.
Silva havia pedido ao responsável pela escala com a delicadeza de um cavalo para não trabalhar com novato, pois, segundo o experiente policial, eram todos Nutella, termo que dispensa qualquer explicação. E saiu da sala em que ficava o corpo administrativo da unidade sem agradecer, tampouco se despedir. No serviço público, assim como na vida, é necessário agir com sutileza, sem mandar – a não ser que você exerça cargo de chefia, o que não era o caso do Silva, nunca foi. Ou seja, o pedido não surtiu efeito. O antigo olhou a escala de serviço, observou que trabalharia com um novato.
Chegado o momento de trabalhar, Silva não havia atentado para a mudança do local, foi remanejado para a parada da Diversidade Sexual, algo que apenas percebeu ao chegar ao quartel para “tirar a falta”. O experiente policial não conhecia o parceiro novo. De longe avistou um rapaz com corpo atlético. Silva olhou de soslaio para o jovem policial.
- tu que tá escalado comigo?
- boa tarde, Sargento, sou o Soldado Enzo. Sim, senhor.
- bora, né? - deslocaram-se ao ponto.
Silva estranhou a movimentação atípica de pessoas, muitos passavam com bandeiras coloridas e roupas extravagantes.
- moderno, o que tá tendo aqui?
- senhor não sabe?
- sei nem que dia é hoje direito.
- é a Parada da Diversidade Sexual.
- Vixi então… (comentário homofóbico)
- sargento, assim, tipo, eles sofrem preconceito, né? Não é como o senhor pensa que é.
- tu é gay? – resposta foi interrompida por um grupo simpático que passou e cumprimentou a dupla.
- Boa tarde – apenas Enzo respondeu e acenou.
- (fala bem preconceituosa de Silva).
- Sargento, ainda bem que não ouviram, desculpa dizer, mas sua fala pode configurar crime de homofobia, além de responder criminalmente, ainda a conduta será apurada no âmbito administrativo, uma punição pode prejudicar sua promoção.
- tu tá estudando, moderno?
- senhor, estou, pretendo passar em algum concurso federal.
- sei, estuda logo, porque se passar muito tempo, fica por aqui.
- se for, não tem problema algum, porém farei o máximo para não chegar a cabo.
- olha ali, é (comentário ofensivo feito em voz baixa).
- sargento…
- tu não acha esquisito?
- não.
- sério?
- sargento, o senhor tem amigos fora da polícia?
- eu mal tenho amigos. - Enzo não comentou, apenas sentiu um pesar no coração.
- boa tarde – Enzo respondeu outro grupo festivo que passava. Uma moça sozinha se dirige aos dois.
- boa tarde, onde fica um caixa eletrônico?
- boa tarde, ali naquela farmácia – Silva fez questão de se movimentar e explicar detalhadamente.
- ai, muito obrigada. O senhor é muito gentil. - a mulher olhou para Silva dos pés à cabeça – tão raro encontrar homens assim, e assim, desculpa se serei intrometida, assim, másculo.
- estamos aqui para servir e proteger – Silva sorriu como há anos não fazia. Uma conversa entre o sargento e moça se desenvolveu, a ponto de trocarem números de telefone. Enzo percebeu que ela é mulher trans, contudo não avisou o colega, afinal... sem comentários.
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