
Meu filhão
Diferente de alguns textos, de antemão adianta que este se trata de uma história não ficcional. Apenas trocarei o nome da pessoa.
Conheci o Fernando há muitos anos, ele vendia chocolates caseiros na Praça Portugal, dentre os itens vendidos ele comercializava doces em formato de genitália, logo achei engraçado, comprei uns, afinal não teria como ser diferente. Era sempre uma forma de fazer rir ao presentear alguém com uma iguaria calórica de formato fálico.
Papo vai, papo vem; ele me disse que residia no Pará, veio para a capital alencarina arriscar a vida com sua arte: gastronomia. Fernando trabalhava com praticamente todas as áreas básicas da culinária, possuía uma paixão por trabalhar com peixes e frutos do mar. Falou que era muito difícil trabalhar com esse tipo de proteínas, contudo era o que lhe despertava mais interesse.
Numa dessas conversas, confessou que estava sem emprego, daí a justificativa de perambular pelas ruas de Fortaleza para vender seus chocolates. Numa dessas jornadas pelo Dragão do Mar lhe sugeriram para confeccionar doces em formato de pênis. A ideia não soou muito agradável para ele, afinal ele era um cara religioso, a necessidade o fez acatar, claro, com a chancela da esposa. Fez um bocado. Foi novamente ao local onde lhe aconselharam elaborar tais artes, logo no começo das vendas se deparou com os mentores da ideia, compraram logo metade do estoque. Assim ele ficou conhecido como o Tio dos Chocolate de pênis.
Fernando era muito comunicativo, falava bem, não escondia muito de sua vida. Comentou que outro motivo de se mudar para Fortaleza foi para o filho iniciar os estudos eclesiásticos no seminário da Prainha, um centro de formação de sacerdotes cristãos, resumindo: queria ser padre.
A vida na nova cidade ia bem, muito bem, até que descobriram que o pequeno contraiu câncer. Quando Fernando me contou, logo tentei iniciar uma campanha para arrecadar recursos, semanalmente a gente ajudava. Assim seguiram as semanas. Ao receber o valor arrecado, ele me convidava para ir conhecer o filho.
- Vá lá por casa, conheça meu filhão, ele gosta de Dragon Ball, você vai gostar dele.
- Vamos ver um dia. – esse convite se repetiu por várias vezes.
Os dias passaram, Fernando me telefonou com voz chorosa, informou que o filho fora internado para tratamento, tentei confortar, não recordo bem o que falei, todavia foi algo do tipo “faremos o possível para ajudar”.
E a campanha seguia, toda semana a gente juntava um valor, passava para ele.
- Quando der, aparece lá no hospital, falei de você, que você gosta de desenhos como ele. – com um sorriso melancólico agradeceu.
- Fernando, acho que semana que vem poderei ir – era uma rotina puxada afinal.
E o dia da minha folga estava próximo, iria telefonar para o Fernando para marcar um dia, esperei chegar mais perto. Mais próximo do dia em que eu esperava telefonar, Fernando me liga:
- Opa Fernando, que você manda?
- Olha, só queria agradecer por tudo o que vocês fizeram por mim, serei eternamente grato.
- Que nada, você é um cara que merece – nem pude completar a frase
- Infelizmente não precisará mais
- Como assim?
- Meu filho – a voz falhou – meu filho faleceu – e caiu em prantos
- Sinto muito – consegui segurar as lágrimas, depois me passou o local do velório.
Fui no dia seguinte, com o estômago embrulhado, afinal se a morte por si já entristece, o término de uma vida jovem abala muito, como abala. O local era simples, o bairro não se encontrava no perímetro nobre da cidade. Como era de esperar, muita tristeza, lágrimas, parentes desolados –a mãe do finado não conseguia se manter firme na cadeira. Em momentos assim, a etiqueta recomenda que apenas se abrace a família da pessoa que partiu, qualquer palavra pode estragar, daí desencadear numa gafe (evite a frase “tudo bem?”). Após prestar minhas condolências a mãe e a irmã do pequeno, vi Fernando. Segui o protocolo de não falar, apenas abracei.
- Poxa, que tragédia – chorando muito Fernando continuou – meu filho querido, meu tesouro. Mas olha, aí meu filhão, finalmente você o conheceu – toda minha estabilidade ruiu aí, ele andou ao encontro da esposa. Eu saí da sala, procurei um canto, homem tem esse costume de não querer mostrar fragilidade, chorei.
Depois disso, ainda falamos. Uma vez ele me telefonou embriagado, chorando, busquei mais escutar do que falar. Senti um aperto no coração, não havia muito o que falar para confortá-lo. Como sabem, vez por outra eu comento sobre uma perda da minha vida, meu pai partiu antes do pai dele, meu avô, homem bruto, disse que a maior dor que ele sentira na vida foi ver o filho num caixão. Menos de dois anos depois vovô seguiu para a pátria celestial.
Há anos não sei sobre Fernando, aos poucos fomos perdendo contato. Como muito acontece em nossas vidas, as pessoas se distanciam e a gente nem sabe o porquê. E a vida segue, com suas feridas, com suas alegrias, com suas graças. Nem sempre a gente entende, talvez não seja para gente compreender, mas para viver, sentir.
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