
Jorge tomava um café de qualidade questionável em um copo de plástico, inapropriado para o consumo de bebidas quentes, mas o brasileiro pouco se lixa para isso, apenas lugares requintados que se preocupam em adquirir os modelos adequados, ou seja, isopor ou papelão.
Depois da digressão, voltemos ao Jorge, funcionário público já estável, acostumado com o trabalho, ali estava segurando seu copo de café e contemplava o nada, não por praticar o mindfulness – palavra que ele desconhece – apenas por não ter com quem conversar, não queria mexer no celular, também estava matando tempo produtivo, porque ninguém é de ferro. Seu estado pseudo meditativo foi interrompido por uma voz firme dizendo seu nome:
• Jorge! Precisamos conversar! – a fala assustou até o funcionário dos serviços gerais
• Que papo é esse, Silvestre? Deixa de brincadeira, tá parecendo minha namorada.
• Eu vi o que tu fez, não se faça de doido.
• Ih... lá ele...
• Quê?
• Bicho, não entendi, qual foi?
• Espera – pausou a fala, direcionou o olhar para Valdir, que fingia varrer o chão já limpo. O responsável pela faxina compreendeu que incomodava a privacidade de um diálogo que ele adoraria saber como termina. Apesar de fofoqueiro, tinha ética, se fosse para saber, de alguma forma a informação chegaria. Valdir deixou local, fingiu que não estava ouvindo.
• Ele já foi, cara.
• Olha, eu sei de tudo o que você faz.
• Tá me espionando?
• Não, mas eu sei que você me espiona.
• Como? Como é?
• Tu fica nessa de tomar café, se esconde, vai andando até o banheiro, fica ali, perto da janela. Tu sabe que sou eu lá dentro, no vaso, sentando aquele barro, afinal a cagada remunerada é direito garantido do trabalhador brasileiro. tu acha que eu não escuto tua respiração ofegante? Eu sei que tu tá mandando uma bronha, parceiro.
• Cara, eu...
• Calma, tem mais. A questão não é isso. Admito que no começo, fiquei, porque tu sabe né, é esquisito. Aí, cara, fiquei pensando, poxa, assim me sinto desejado, sabe? É legal para autoestima, eu me acho muito feio, desengonçado, minha voz é fina, parece a do Anderson Silva, só que ele sabe lutar. Levei chifre da minha ex-mulher, aí, vem a parada, saber que eu, ou melhor, algo que sai de mim excita alguém, é uma honra.
• Cara... assim...
• Calma, mais um pouco. E era uma das melhores horas do meu dia, ir lá, sentar no vaso e escutar seu frenesi, saia do banheiro leve, no corpo e com espírito elevado por sentir que trouxe bem estar a outro ser senciente. Até que um dia, transitando pela repartição, flagrei você, sim, você, fazendo o mesmo que você fazia comigo com o Elano. Me senti trocado, traído, nosso relacionamento se resume a isso, entretanto fiquei triste, garanto que foi uma dor diferente das vezes que fui traído, era algo sublime que sentia, como se meu papel no mundo fosse esse, a vida passou a ter sentido. E você faz isso...
• Cara, desculpa, eu.
• Pesquisei sobre taras na internet, tem tanto fetiche doido, parceiro, tanto... enfim... você pode fazer isso com quem quiser, caso ainda sinta vontade de ficar ali perto do banheiro para cheirar minha cagada, bicho, de boa. Tranquilo, não tem problema, na verdade enaltece meu dia.
• Silvestre, assim, o que tu acha da gente sair? Tomar uma cerveja? Cinema? Jantar?
Ih, lá ele...
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